quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Os Arcanos de um poeta

OS ARCANOS DE UM POETA
Ângelo Monteiro, Outras Vozes (no prelo)

Há uma relação inseparável entre o Assis Lima de Canto popular e comunidade narrativa, e o autor que escreveu, em parceria com Ronaldo Brito, uma trilogia das “festas brasileiras” (Baile do menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim). Essa relação inseparável entre o conto e o canto vai se fazer mais patente em seu livro Poemas arcanos (São Paulo: Ateliê Editorial, 2008); e como coivara que se expande, em vez do fogo represado, de puro bronze, em “coivara de aço/fogo sem labaredas” evocado em seu primeiro poema, a sua poética, em conto e em canto, associa a história mágica de fadas com os ritmos do trabalho, os desafios e as excelências da imemorial cultura haurida em sua infância.
Daí poemas como Encontro dos barcos, que nos acorda “quando o dia vem raiando/e a terra é um cais dourado”, e em que saúda o “Tempo/barqueiro remador”. Um arco-íris poético parece unir os dois mundos — o real e o imaginado — e este último dá conta de todas as gradações de uma visão em que, ao vestir-se o próprio morto, numa excelência, como em Rito, “eis que ele recebe/o que já não precisa/o que nunca em vida/tão dado lhe foi/para que às brenhas da eternidade/não chegue tão só”. Visão, a de Assis Lima, cheia de nuances jamais insuspeitadas àquele olhar que desconhece limites entre o que há de interno e externo a nós mesmos, como nos faz ver nestes dois versos de Aquarela: “Não sei se em tarde tão clara/o rio sabe quem sou”.
Como o título do livro nos anuncia, Poemas arcanos recolhe, ao lado de aspectos da poética popular, as ressonâncias de uma linguagem que se perde no indefinido, como o elemento religioso contido em poemas como a Lenda de João, a exemplo desta quadra: “Na data que marcaria/o solstício de verão/Maria esperou e viu/sinal de fogo: era João”. Ou o lado mais inquietante das coisas, como a estranha pergunta, em Temas para a lua cambará, deste terceto: “O meu sangue quem lava/em que água/se meu rio secou?”. Com toda certeza não se pode conceber a verdadeira poesia afastada de uma ligação com os enigmas mais complexos da existência, como nos testemunham os versos desta estrofe de Evocação negreira: “Não sei às vezes se chore/ou se bendiga o deus triste/que do outro lado da noite/escureceu minha face”. Talvez a melhor síntese de Poemas arcanos se encontre no belíssimo poema Marujo que aponta, mais que qualquer outro, para esse incansável transito entre o mundo imaginado além dos caminhos habituais e a promessa eterna das águas: “Meu navio está no porto/ancorado por um fio./As águas do mar são fortes/mas não são como as do rio”. As do rio, sendo mais pacíficas, nos darão sempre um sinal de volta. E essa volta à terra é, como não poderia deixar de ser, uma retomada do lado curiosamente menos questionável de nós mesmos, como nos ensina a astúcia do inspirado poeta que é Assis Lima.